Os
contadores estão em polvorosa diante de uma nova norma internacional de conduta
profissional que entra em vigor a partir de julho do ano que vem na maior parte
dos países.
Embora
a norma tenha sido editada em julho deste ano, depois de seis anos em
discussão, foi uma nota sobre o tema publicada no Valor na semana passada - e que teve mais de 15 mil
compartilhamentos nas redes sociais - que acordou a classe contábil e as empresas
para um assunto que já estava ocupando a agenda dos líderes da profissão no
país. Ao todo, são 530 mil profissionais da área no Brasil.
Na
teoria, a tarefa parece simples. Diz a norma: quando souber de algum
descumprimento relevante de lei ou regulamento em uma empresa para qual preste
serviço, e que comprometa o interesse público, o contador deve denunciar o fato
às autoridades, caso a própria companhia não tome providências.
É
a postura que se espera de qualquer pessoa. E que agora será incorporada ao
código de ética dos contadores, que deixam de ser obrigados a guardar sigilo
sobre ilegalidades cometidas pelos clientes ou pelas empresas nas quais sejam
empregados.
Mas
nada como a vida real para mostrar que até mesmo as boas causas podem ser de
difícil aplicação - não por falta de vontade dos profissionais, mas diante dos
riscos que isso representa.
Os
contadores, especialmente aqueles que trabalham internamente nas empresas,
estão temendo as consequências que podem sofrer se e quando fizerem denúncias
do tipo. Consequências essas que poderiam ser não apenas financeiras, em caso
de perda do emprego, como também no que diz respeito à própria integridade
física.
Neste
momento, o Conselho Federal de Contabilidade (CFC), que é o órgão que
responsável que regulamenta a profissão no Brasil, e o Instituto dos Auditores
Independentes do Brasil (Ibracon) vêm iniciando o debate com reguladores e
entidades locais, bem como consultando advogados, para saber como - e até se é
possível - aplicar a norma no país sem mudança na legislação.
"Estamos
neste momento traduzindo a norma e checando as diferenças em relação à
legislação local", afirma Idésio Coelho, presidente do Ibracon.
Ontem
estava agendada uma reunião com a Comissão de Valores Mobiliários e outra com o
Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC). Amanhã, haverá um evento
pequeno na sede do Ibracon, em São Paulo, do qual participarão representantes
da Associação Brasileira das Companhias Abertas (Abrasca) e da Apimec
(associação que reúne analistas de mercado e investidores).
Devem
ser chamados para futuras conversas, entre outros órgãos, a Receita Federal, o
Ministério Público, o Tribunal de Contas da União e o Ministério da
Transparência - até porque a norma profissional também se aplica a contadores
que atuam no setor público.
Desde
2014, escritórios de contabilidade que prestam serviços externamente para
empresas, e também os auditores independentes, já são obrigados a reportar
transações suspeitas de lavagem de dinheiro ao Conselho de Controle de
Atividades Financeiras (Coaf).
O
que a norma internacional traz de novo é ampliar bastante o escopo das
ilegalidades ou suspeitas de ilegalidade que devem ser reportadas - como
pagamento de propina, evasão fiscal e descumprimento de regras ambientais, por
exemplo - e também a inclusão dos contadores empregados por empresas entre
aqueles que devem fazer as denúncias.
Outra
diferença clara é que a comunicação ao Coaf é requerida pela lei federal
12.283, que dá segurança jurídica e prevê sigilo sobre o denunciante.
Já
a norma de conduta, a princípio, viria apenas por resolução do Conselho
Federal.
É
esse tipo de amparo legal, que tem a regra do Coaf, que os contadores gostariam
de ter para que a nova versão do código de ética seja adotada em sua plenitude
no Brasil, afirma Zulmir Breda, vice-presidente técnico do CFC. "Temos que
debater que tipo de proteção jurídica haverá. Não podemos colocar o contador em
posição de risco", diz ele.
Breda
reforça que a o CFC reconhece a norma como de elevado interesse público, mas
entende que o ambiente para sua aplicação precisa ser adequado, até mesmo para
que ela não vire letra morta, caso os contadores não se sintam seguros para
reportar. "O CFC não é contra. A norma é boa para o país. Mas precisamos
lidar com a realidade do Brasil e sem isso [mudança de lei e mecanismos de
proteção ao contador] fica difícil implementar na prática", afirma.
O
Ibracon reconhece que a norma é mais fácil para ser cumprida por firmas de
auditoria externa de grande porte, que já são obrigadas a fazer comunicações
semelhantes a CVM, Banco Central e Securities and Exchange Commission (SEC) em
casos específicos (mas não tão abrangentes como os previsto na nova norma), do
que por um contador pessoa física que trabalha na própria empresa denunciada.
Mas
a entidade também compartilha da visão de que é preciso mexer na legislação
para implementação plena da norma no Brasil. "Se não houver proteção
legal, o contador corre o risco de ser processado e até de ameaça física",
afirma Coelho.
O
presidente do Ibracon destaca ainda que, se houver o entendimento de a lei
precisa mudar para o código ser aplicado, os contadores locais não poderão ser
acusados de descumprir a regra.
O
grego Stavros Thomadakis, presidente do órgão internacional que edita as normas
éticas da profissão contábil (Iesba, na sigla em inglês), esteve em Brasília
nesta semana, exatamente para esclarecer dúvidas sobre a nova norma. Ao todo,
104 países devem adotar a regra a partir de julho do ano que vem, sendo que 20
já incorporaram ao menos parte do texto à legislação.
Em
entrevista ao Valor, ele defendeu
que a norma é "equilibrada" e argumenta que o próprio texto já diz
que o contador deve considerar o ambiente e os riscos no processo de tomada de
decisão sobre reportar ou não uma não-conformidade às autoridades. "O
Brasil não está sozinho com essa preocupação. E a norma não está acima da lei
local", enfatizou Thomadakis.
Entre
os pontos que devem ser levados em conta estão a avaliação sobre a gravidade e
impacto no interesse público do problema identificado, seja para a
sobrevivência da própria empresa (em caso de descoberta do problema) ou para a
comunidade, como na venda de produtos que causem danos à saúde da população,
por exemplo.
Thomadakis
chama atenção ainda para o fato de que o comando da norma é para o contador
reportar primeiro à administração da empresa ou para os órgãos de governança da
entidade. E somente quando não houver resposta apropriada que deve se
considerar romper o contrato, em caso de prestador de serviço externo ou
auditor, e também de denúncia às autoridades.
No
caso da aplicação no Brasil, caberia ao Conselho Federal de Contabilidade
especificar quais seriam os órgãos que receberiam as denúncias. cada país tem
uma estrutura de controle. Mas o que se sugere é que irregularidades fiscais
sejam informadas à Receita, que descumprimentos de leis ambientais ao órgão
responsável pela área e assim por diante.
A
norma tampouco prevê quais seriam as sanções impostas aos contadores que não
seguirem as regras, como suspensão ou perda de registro, embora se presuma que
cada regulador local estabeleça as penas, segundo Thomadakis.
Ainda
a norma preveja a possibilidade de não se fazer a denúncia, o presidente da
Iesba lembra que ela requer, nos dois casos, que todo o processo de decisão
seja documentado pelo profissional.
Fonte:
Valor Econômico
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